Brasil: Da Legalização Consular ao Apostilamento de Haia

BRASIL: DA LEGALIZAÇÃO CONSULAR AO APOSTILAMENTO DE HAIA

 

Gustavo Dal Molin de Oliveira[i]

 

Resumo: Apresenta-se a evolução do ordenamento jurídico brasileiro, da imposição da legalização consular até a abolição de tal exigência, quanto aos documentos públicos abraçados pela Convenção da Haia de 05 de outubro de 1961, para Abolição da Exigência da Legalização de Documentos Públicos Estrangeiros; com ênfase nas questões práticas e na realização notarial da legalização consular e também do Apostilamento de Haia.

Palavras-chave: Apostilamento de Haia. Legalização consular. Função notarial.

 

1 INTRODUÇÃO

O procedimento de consularização de documentos advindos ou destinados ao exterior é uma providência burocrática arraigada, pois existente desde os primórdios da organização política e jurídica brasileira. Através da pesquisa histórica, bibliográfica e legislativa, demonstrar-se-á que a adesão do Brasil à Convenção da Apostila foi implementada de forma a preservar a execução do serviço por realizadores da função notarial. Com efeito, o Apostilamento de Haia reduz tão somente a burocracia, sem mitigar os efeitos jurídicos ou o valor probante do procedimento de legalização consular de documentos, que deixa de ser exigido com relação aos documentos/países abraçados pela Convenção da Apostila.

 

2 DA LEGALIZAÇÃO CONSULAR AO APOSTILAMENTO DE HAIA

Do século XVI ao início do século XIX, o Brasil foi colônia de Portugal e submeteu-se à sua legislação. Não obstante a declaração de independência, a 7 de setembro de 1822, o Brasil carecia de leis próprias e teve a necessidade de prosseguir valendo-se de algumas espécies normativas portuguesas, até que editasse sua própria legislação.

Nesse contexto, permaneceram vigentes ordenações, leis, regimentos, alvarás, decretos e resoluções pelas quais o Brasil se governava até 25 de abril de 1821, até que fossem revogadas e substituídas pela legislação pátria.

A submissão de um Estado independente às leis e regulamentos de outra nação não demorou a causar imbróglios:

Tal teria sido o caso com a galera norte-americana Superior, comandada pelo capitão Samuel Mayer, que em dezembro de 1822 recorreu da decisão do Desembargo do Paço de exigir o visto dos cônsules portugueses. A 8 de dezembro de 1822, José Bonifácio faria publicar Portaria desobrigando a necessidade dos vistos portugueses, “pois é óbvio que estando a nação brasileira soberana e independente, seria a maior indignidade estarem as alfândegas do Império e a franqueza do seu comércio e navegação debaixo da dependência de cônsules de um país tal como Portugal, de quem o Brasil está solenemente separado (…)”. (ANJOS, 2007, p. 242)

Trata-se, quiçá, do primeiro ato de eliminação da exigência da legalização consular.

Posteriormente, o Brasil Imperial apressou-se para codificar sua legislação consular. A 13 de novembro de 1823 foi criada a Secretaria de Estado dos Negócios Estrangeiros. “Anos depois, em 1834, durante a gestão do ministro Aureliano de Souza e Oliveira Coutinho, foi promulgado o primeiro regimento consular, pelo decreto de 14 de abril de 1834”, de acordo com Louise Gabler (2014).

Essa consolidação, denominada Regimento Consular de Aureliano de Souza, continha inúmeros anexos com modelos de formulários, certidões e, inclusive, de legalização de documentos e de assinaturas (CASTRO, 2009, p. 56).

A exigência da legalização consular existe no ordenamento jurídico pátrio, portanto, desde a colonização e independência do Brasil, até os dias de hoje.

Por força do artigo 1º do Decreto nº 84.788/1980, delegou-se ao Ministro de Estado das Relações Exteriores a competência para aprovar e modificar normas relativas às atividades consulares, suas praxes burocráticas e formulários nelas utilizados. Atualmente, o Ministério das Relações Exteriores disciplina a legalização consular de documentos através da Portaria 656/2013 e do Manual do Serviço Consular e Jurídico, que disciplina atos notariais e de registro civil, assuntos eleitorais e até atos referentes à navegação.

A legalização consular de documentos, por vezes denominada consularização, aplica-se tanto aos documentos públicos estrangeiros que devem produzir efeitos no Brasil, quanto aos documentos públicos brasileiros ou certificados notariais, emitidos no território nacional, que devam produzir efeitos no exterior.

Na primeira hipótese, para que um documento público estrangeiro possa produzir efeitos jurídicos no país e revestir-se de fé pública, torna-se imprescindível a prévia legalização pela Autoridade Consular brasileira que detenha jurisdição sobre o local em que o documento foi emitido. O procedimento de legalização envolve uma análise formal do documento e o reconhecimento da identidade e da função da autoridade estrangeira signatária do documento subjacente.

Relativamente aos documentos públicos brasileiros destinados a produzir efeitos em outros países, a intervenção da autoridade consular limitar-se-á ao reconhecimento do sinal público. Em outras palavras, será obrigatório o reconhecimento de firma do signatário do documento, ou a autenticação notarial da fotocópia, e a formalidade legalização consular, por sua vez, confirmará única e exclusivamente que o ato notarial foi praticado por Tabelião ou preposto. De acordo com o artigo 3º da referida Portaria 656/2013: “O ato de legalização consistirá exclusivamente na conferência do sinal público pelo funcionário responsável e sua atestação mediante a aposição de carimbo ou etiqueta oficiais e firma desse funcionário.”

Da mesma forma que o reconhecimento de firma, o ato de legalização consular não importa em valoração quanto ao teor do documento, ou seja, não confirma ou atesta a legalidade ou a correção de seu conteúdo.

Em linhas gerais, este é o procedimento de consularização ou legalização consular. E é justamente sobre esta formalidade que versa a Convenção da Haia de 05 de outubro de 1961, para Abolição da Exigência da Legalização de Documentos Públicos Estrangeiros.

A finalidade precípua da Convenção da Apostila é eliminar, entre os cento e doze países signatários, a exigência de legalização diplomática ou consular de documentos públicos estrangeiros; substituindo tal formalidade pela emissão e afixação ao documento público subjacente de um certificado padronizado, denominado apostila, ou Apostille, expressão equivalente em francês, idioma oficial da convenção.

A legalização consular não foi eliminada do ordenamento jurídico pátrio. Doravante será exigida somente quando o fluxo de documentos públicos envolver países que não sejam signatários da Convenção da Apostila, ou quando o documento não estiver sujeito às disposições da Convenção da Apostila, como, por exemplo, documentos administrativos que lidam diretamente com operações comerciais ou aduaneiras.

Com efeito, a legalização consular não será mais necessária para os documentos públicos brasileiros, quando destinados a outros países signatários da Convenção da Apostila, conquanto que sejam apostilados. Fica igualmente abolida a necessidade de legalização dos documentos públicos estrangeiros emitidos por qualquer dos cento e onze outros países signatários da Convenção da Apostila, até então feita pela autoridade consular brasileira do país de origem do documento, porquanto será suficiente o apostilamento pela autoridade competente estrangeira.

De acordo com o Relatório Explicativo de Yvon Loussouarn (1961), a eliminação da legalização consular envolvia basicamente três preocupações: o novo procedimento deveria ter valor probatório equivalente ao da consularização, autenticar a origem do documento e, além disso, ser o mais simples possível. A apostila deve ser a própria simplicidade.

Para este escopo, a opção do Brasil pelos serviços notariais e de registro não poderia ter sido mais adequada. Os atos praticados por tabeliães de notas e por autoridades consulares, no exercício da função notarial, possuem o mesmo efeito e valor probante; considera-se autêntico o documento quando o tabelião reconhecer a firma do signatário, gerando ainda presunção de autoria; o procedimento é simplificado, na medida em que a consularização seria mera redundância: conferência e reconhecimento do sinal público do tabelião ou preposto autorizado pela autoridade consular. Isto porque, no caso do Brasil, as autoridades consulares exercem a função notarial em caráter supletivo e, doravante, a emissão de apostilas será feita por quem exerce em sua plenitude a função notarial.

Entende-se que a supressão ou redução de formalidades burocráticas facilita a circulação de pessoas, documentos e mercadorias, motivo pelo qual a República Federativa do Brasil aderiu à Convenção da Apostila. O texto da convenção foi aprovado pelo Decreto Legislativo nº 148/2015 e sua promulgação deu-se pelo Decreto nº 8.660/2016.

Por ocasião do depósito do instrumento de adesão do Brasil à Convenção da Apostila, a 2 de dezembro de 2015, designaram-se os notários, registradores e magistrados como autoridades apostilantes; e atribui-se, ao Poder Judiciário, a competência para implementar a emissão de apostilas.

Por força de suas competências constitucionais, o Conselho Nacional de Justiça ficou incumbido da implementação do serviço de apostilamento, assumindo “a função de ponto focal brasileiro para tratamento do tema junto a entidades nacionais e estrangeiras”, como ressaltou matéria veiculada pelo portal do Ministério das Relações Exteriores.

A regulamentação da aplicação Convenção da Apostila, no âmbito do Poder Judiciário, teve como marco a edição da Resolução nº 228/2016, do Conselho Nacional de Justiça. Posteriormente, o Provimento nº 58/2016, da Corregedoria Nacional da Justiça, delineou os procedimentos que devem ser adotados pelas autoridades apostilantes.

Não houve surpresa com a opção pelos notários e registradores, na medida em que a apostila visa abolir a exigência da legalização, procedimento realizado pelas autoridades consulares justamente no exercício da função notarial, que lhes é emprestada por força do artigo 18 da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro (Decreto-Lei nº 4.657/1942), alínea “f” do artigo 5º da Convenção de Viena sobre Relações Consulares (Decreto nº 61.078/1967) e artigo 60 do Decreto nº 8.817/2016, dentre outras espécies normativas.

Para atender a população de um país com dimensão continental, pesam a favor do notariado e dos registros públicos: capilaridade da rede de atendimento e presença em todo território nacional; afinidade com trato de documentos públicos; integração eletrônica e manutenção da Central Nacional de Sinal Público; competência para autenticar fotocópias e reconhecer firmas; e, quiçá, estar sujeito à autoridade correcional do Poder Judiciário, que compreende a orientação e fiscalização dos serviços notariais e de registro.

De largada, para que fosse possível a imediata emissão de apostilas em todo o território nacional, o Conselho Nacional de Justiça tornou obrigatório o oferecimento do serviço de apostilamento pelos serviços notariais e de registro de todas as Capitais do país, a partir de 14 de agosto de 2016. Quanto aos demais serviços notariais e de registro interessados em prestar o serviço, essa intenção deve ser submetida ao crivo da Corregedoria Nacional de Justiça, responsável pela decisão quanto à interiorização do serviço.[ii]

As Corregedorias Gerais de Justiça e os Juízes Diretores do foro também são autoridades apostilantes, quanto a documentos de interesse do Poder Judiciário.

Ressalta-se que a atuação do magistrado enquanto autoridade apostilante somente ocorrerá quando o documento público subjacente, a ser apostilado, seja destinado a produzir efeitos institucionais do Poder Judiciário. Logo, os documentos emitidos pelo Poder Judiciário ou extraídos de processos judiciais, como mandados, alvarás, formais de partilha e sentenças, que as partes tenham interesse em apostilar para uso particular, excluir-se-ão da alçada do Poder Judiciário.

A realização notarial do Apostilamento de Haia inicia-se com minuciosa análise formal do documento público e, se não houver inconformidade com os aspectos extrínsecos, proceder-se-á ao reconhecimento de firma do signatário. Caso o reconhecimento de firma não tenha sido feito pela autoridade apostilante, impõe-se a checagem e reconhecimento do sinal público, providência facilitada pela Central Nacional de Sinal Público. Satisfeitas as exigências do artigo 10 do Provimento nº 58, o documento será finalmente apostilado.

Será emitida uma apostila para cada autoridade emissora do documento subjacente. Também será emitida uma única apostila para documentos emitidos em mais de uma página, salvo se o próprio interessado desejar apostilar cada página individualmente. Contudo, caso o mesmo documento seja emitido por mais de uma autoridade; ou ainda se vários documentos são emitidos por autoridades diferentes; em ambos os casos, uma Apostila separada será emitido para cada documento e/ou assinatura que exige autenticação.

Apesar de ser dispensável o requerimento escrito (Provimento nº 58, art. 10, § 1º), recomenda-se sua utilização pelos serviços notariais, sobremodo para que o interessado indique, expressamente, para qual assinatura lançada no documento deseja que seja emitida a apostila, no caso em que o documento seja firmado por duas ou mais autoridades.

O Sistema Eletrônico de Informações e Apostilamento (SEI Apostila) é o único sistema necessário para execução do serviço. Após o preenchimento das informações relativas ao documento subjacente, os dados devem ser conferidos e assinados por meio de certificado digital. Ao final, a apostila será impressa em papel seguro fornecido pela Casa da Moeda do Brasil, marcada com o carimbo padrão e assinada de próprio punho pelo responsável pela emissão da apostila.

O artigo 4º da convenção determina que a apostila seja “aposta no próprio documento ou em uma folha a ele apensa”. Trata-se de questão de sua importância, pois apostilar tem como acepção apor, aplicar ou justapor algo à margem de documento. “A apostille deve ser aposta nos documentos, ou num prolongamento dos mesmos, quando não houver espaço” (RODAS E MÔNACO, 2007, p. 272). Por razões de segurança, se o documento subjacente não tiver espaço suficiente para afixação da apostila, deve-se preferir a colagem de uma extensão à afixação parcial da apostila, ainda que o papel seguro fornecido pela Casa da Moeda do Brasil dê múltiplas opções de adesivagem.

Não é diferente a orientação constante do item 4.7.32 do Manual do Serviço Consular e Jurídico, segundo o qual será anexada folha de papel, devidamente apensada e selada, aos documentos apresentados para legalização sem espaço para os atos de legalização consular.

 

3 CONSIDERAÇÕES FINAIS

A adesão do Brasil à Convenção da Haia de 05 de outubro de 1961, para Abolição da Exigência da Legalização de Documentos Públicos Estrangeiros, fez coexistirem a legalização consular e o Apostilamento de Haia.

A consularização, presente em nosso ordenamento desde os primórdios, mantém-se com relação aos documentos e/ou países não abraçados pela Convenção da Apostila. No âmbito da Convenção da Apostila, tal formalidade consular foi abolida e substituída por uma providência mais simples: a emissão da apostila: pela autoridade apostilante estrangeira, quanto aos documentos advindos do exterior; ou pelos notários, registradores e magistrados, quanto aos documentos públicos brasileiros.

Apostilamento da Haia e legalização consular são procedimentos similares, com idênticos efeitos jurídicos e força probatória, pois têm a realização da função notarial como denominador comum.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ANJOS, João Alfredo dos. José Bonifácio, primeiro Chanceler do Brasil. Brasília: Fundação Alexandre de Gusmão, 2007.

BRASIL. Manual da Apostila: um manual para a operação prática da Apostila / Hague Conference on Private International Law. Coordenação: Fabrício Bittencourt da Cruz e Fabyano Alberto Stalschmidt da Cruz. Tradução: Marcelo Conforto de Alencar Moreira, Marina Brazil Bonani, Rogério Gonçalves de Oliveira, Thaísa Carla Melo. Brasília: CNJ, 2016.

______. Manual do Serviço Consular e Jurídico. Brasília: Ministério das Relações Exteriores, 2016.

______. Ministério das Relações Exteriores. Adesão do Brasil à “Convenção da Apostila”. Disponível em: <http://www.itamaraty.gov.br/notas-a-imprensa/12605-adesao-do-brasil-a-convencao-da-apostila?lang=pt-BR>. Acesso a: 3 jun 2017.

CASTRO, Flávio Mendes de Oliveira. Dois séculos de história da organização do Itamaraty. Vol. I (1808 – 1979). Brasília: Fundação Alexandre de Gusmão, 2009.

GABLER, Louise. Secretaria de Estado dos Negócios Estrangeiros. Arquivo Nacional, 2014. Disponível em: <http://linux.an.gov.br/mapa/?p=5875>. Acesso a: 3 jun 2017.

LOUSSOUARN, Yvon. Explanatory Report on the 1961 Hague Apostille Convention. Offprint from the Acts and Documents of the Ninth Session, tome II, Legalisation. Haia: 1961. Disponível em: <https://www.hcch.net/en/publications-and-studies/details4/?pid=52>. Acesso a: 4 jun 2017.

RODAS, João Grandino; MÔNACO, Gustavo Ferraz de Campos. A Conferência da Haia de Direito Internacional Privado: a participação do Brasil. Brasília: Fundação Alexandre de Gusmão, 2007.

 


 

[i] Gustavo Dal Molin de Oliveira é bacharel em Direito pela Universidade Federal de Rondônia e pós-graduando em Direito Imobiliário, Notarial e Registral pela Universidade de Santa Cruz do Sul/RS. Delegatário titular do Sétimo Tabelionato de Notas de São Luís/MA, desde 2013. E-mail: [email protected]

[ii] O exercício da competência de autoridade apostilante depende de autorização específica e individualizada da Corregedoria Nacional de Justiça, que manterá, em sua página eletrônica, para fins de divulgação ao público, lista atualizada das autoridades brasileiras habilitadas a emitir a apostila, em cumprimento aos §§ 1º e 2º do artigo 6º, conjugado com artigo 19, ambos da Resolução nº 228.

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