O notário e a proteção jurídica dos analfabetos

O TABELIÃO DE NOTAS E A SEGURANÇA JURÍDICA DOS ANALFABETOS

 

Gustavo Dal Molin de Oliveira[i]

 

Resumo: O analfabetismo é um grave problema socioeconômico que reduz a produtividade e o desenvolvimento de habilidades e conhecimento. No plano jurídico, é reconhecida a vulnerabilidade das pessoas analfabetas nos atos de declaração de vontade e na celebração de contratos. A partir de revisão bibliográfica, será exposto o problema do analfabetismo e o tratamento conferido aos analfabetos pelo sistema jurídico pátrio, demonstrando-se como a atuação imparcial dos tabeliães e a formalização de atos e negócios jurídicos através de instrumento público constituem medidas para assegurar proteção, inclusão social e segurança jurídica às pessoas analfabetas.

Palavras-chave: Tabelião de Notas. Segurança jurídica. Analfabetos.

 

1. INTRODUÇÃO

O Brasil é um país com grande número de analfabetos absolutos, ou seja, pessoas que não compreendem o alfabeto e não conseguem se comunicar pela escrita e leitura. O problema é agravado pelo grande contingente de analfabetos funcionais que, embora alfabetizados, mostram-se incapazes de compreender textos ou interpretá-los, não detendo conhecimentos para atender às necessidades práticas do dia a dia, tampouco para reconhecer-lhes autossuficiência nas relações jurídicas.

O problema consiste em saber: analfabetos podem celebrar negócios jurídicos? Como se dá a proteção dos analfabetos nas relações privadas? O instrumento público notarial confere segurança jurídica aos analfabetos absolutos e funcionais?

O estudo do tema é relevante para os profissionais do direito, devido ao grande número de demandas levadas ao Poder Judiciário que discutem a vulnerabilidade das pessoas analfabetas para celebrar contratos e assumir obrigações.

Através da revisão bibliográfica, demonstrar-se-á a importância da atuação do tabelião de notas para o exercício de direitos e celebração de negócios jurídicos por analfabetos absolutos e funcionais, destacando-se a proteção jurídica conferida à parte vulnerável e a inclusão social como novos paradigmas do direito privado.

 

2. O PROBLEMA DO ANALFABETISMO

As pessoas analfabetas são aquelas que não sabem ler e escrever, que não desenvolveram a habilidade de compreender e de se expressar pela forma escrita, isto é, através da representação da linguagem falada por meio de signos gráficos. Ausência ou insuficiência de instrução escolar básica podem decorrer, conforme lição de Marques e Miragem (2014, p. 164), de “problemas ou limitações pessoais (geralmente de fonte econômica, social ou mesmo territorial) ou face à dificuldades na prestação de serviços públicos educacionais (geralmente na infância e adolescência)”.

No Brasil, a taxa de analfabetismo da população com idade igual ou superior a 15 anos foi de 7% em 2017, o equivalente a 11,5 milhões de pessoas. Considerada apenas a população idosa, com idade igual ou superior a 60 anos, o percentual de analfabetos sobe para 19,3%. O Estado do Maranhão possui a segunda maior taxa de analfabetismo, com 16,6%, superado apenas pelo Estado de Alagoas, com 18,2%, conforme Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua (IBGE, 2018).

Ao lado do problema do analfabetismo absoluto, compreendido como completa falta de habilidade de ler e escrever, existe uma debilidade que passa despercebida para muitas pessoas: o analfabetismo funcional. Há pessoas que aprendem a ler e escrever, mas, em decorrência de imperfeições no processo de alfabetização, não adquirem habilidades suficientes para utilizar a informação escrita para participar da vida em sociedade, desenvolver os seus conhecimentos e o seu potencial.

A doutrina comenta as diferenças entre os tipos de analfabetismo:

Desde a década de 70 do século XX, a Unesco criou uma segunda categoria de analfabetos. Os chamados analfabetos funcionais. São aqueles que – formalmente – tem a habilidade de se comunicar por escrito usando o alfabeto e sabem ler textos simples e assinar seu nome, mas não tem a capacidade de entender as ideias explícitas (muito menos as implícitas) de um texto e emitir um juízo crítico sobre estas ideias. Em outras palavras, diferentemente do analfabeto absoluto, o analfabeto funcional sabe “decodificar” e “ler ou pronunciar” as palavras escritas em um texto, sem, porém, necessariamente compreender seu significado principal, seus impactos ou como colocá-las em prática, sua “habilidade com o alfabeto” ou sua “capacidade” de leitura e escrita ou de cálculo é muito reduzida, impedindo-o de agir de forma eficiente frente a textos complexos e em muitas situações da vida que necessitem compreensão da complexidade. A proteção do analfabeto funcional é praticamente inexistente, a não ser através do direito do consumidor e do dever (positivo) de informar (MARQUES; MIRAGEM, 2014, p. 168).

O ordenamento jurídico pátrio prescreve condições à prática de atos relevantes por analfabetos absolutos, todavia, aduz Beviláqua (2013, p. 301): “O analfabeto pode exercer todos os atos da vida civil que a lei não lhe vedar expressamente”.

No contrato de prestação de serviço, por exemplo, “quando qualquer das partes não souber ler, nem escrever, o instrumento poderá ser assinado a rogo e subscrito por duas testemunhas”, nos termos do artigo 595 do Código Civil.

Dentre os atos não permitidos aos analfabetos está a nomeação de procurador, por escrito particular, conforme inteligência do artigo 654 do Código Civil: “Todas as pessoas capazes são aptas para dar procuração mediante instrumento particular, que valerá desde que tenha a assinatura do outorgante”. Em outras palavras, o analfabeto somente poderá passar procuração por instrumento público, pois assim o notário redigirá o mandato conforme instruções do outorgante, notadamente quanto à pessoa do mandatário e à extensão dos poderes conferidos.

Com relação às disposições de última vontade, o analfabeto deverá valer-se do testamento público, consoante o artigo 1.865 do Código Civil, na medida em que o testamento cerrado e o testamento particular exigem a assinatura do testador. Importante destacar que, com exceção do contrato de prestação de serviço, as demais hipóteses legais que permitem ao analfabeto pedir que alguém assine por ele, a seu rogo, na presença de testemunhas, envolvem a participação do Tabelião, do Oficial de Registro ou de servidores público da União, Estados ou Municípios, a saber: registro civil de nascimento, casamento e óbito (Lei 6.015/73, art. 37, § 1º); contratos ou termos administrativos no âmbito de programas de regularização fundiária e de programas habitacionais de interesse social (Lei 6.015/73, art. 221, § 1º); escrituras e procurações públicas (Código Civil, art. 215, § 2º).

Ao versar sobre a prova, o legislador estipulou que “o instrumento particular, feito e assinado, ou somente assinado por quem esteja na livre disposição e administração de seus bens, prova as obrigações convencionais de qualquer valor”. Dentre as possíveis interpretações do artigo 221 do Código Civil está a que o instrumento particular não faz prova das obrigações convencionais assumidas por pessoas não alfabetizadas; ou, ainda, aquela que só permite ao analfabeto utilizar instrumento particular, para convencionar obrigações, quando a lei assim autorizar.

Ainda que o analfabeto aponha sua impressão digital sobre o documento, haverá incertezas quanto à vontade manifestada e à aquiescência ao inteiro teor das obrigações assumidas. No tocante ao tráfico jurídico e circulação de documentos, a autenticidade da impressão digital aposta poderá suscitar dúvida, a qual somente será dirimida mediante perícia datiloscópica, o que coloca em xeque a boa-fé objetiva e onera demasiadamente a certeza jurídica, necessária à segurança negocial.

Recentemente, o egrégio Tribunal de Justiça do Estado do Maranhão enfrentou a problemática decorrente da contratação de empréstimo consignado por analfabetos no julgamento do Incidente de Resolução de Demandas Repetitivas nº 53983/2016, sendo aprovada, por maioria, tese apresentada pelo Des. Paulo Sérgio Velten:

A pessoa analfabeta é plenamente capaz para os atos da vida civil (CC, art. 2º) e pode exarar sua manifestação de vontade por quaisquer meios admitidos em direito, não sendo necessária a utilização de procuração pública ou de escritura pública para a contratação de empréstimo consignado, de sorte que eventual vício existente na contratação do empréstimo deve ser discutido à luz das hipóteses legais que autorizam a anulação por defeito do negócio jurídico (CC, arts. 138, 145, 151, 156, 157 e 158).

O analfabetismo não induz incapacidade civil, mas constitui indubitável causa de vulnerabilidade na celebração de contratos. A pessoa analfabeta assume posição contratual desconfortável, pois precisa acreditar naquilo que lhe é dito que consta do documento, eis que não tem habilidade de ler ou de interpretar as cláusulas e disposições contratuais para conferir se o contrato escrito está em conformidade com o prévio acordo verbal. O analfabeto precisa contar com a mais absoluta boa-fé da outra parte contratante para que o contrato escrito represente o acordo de vontades, ao passo que a parte que redigiu o instrumento deverá cercar-se de cautelas para poder comprovar que a aprovação e aquiescência da parte contratante analfabeta.

Os inconvenientes da utilização dos documentos particulares por pessoas que não saibam assinar são problemas superados pela intervenção do tabelião de notas, uma vez que o instrumento público é chancelado com a fé pública notarial, com atributo de autenticidade e certeza, sendo a melhor alternativa para formalizar a declaração de vontade e a celebração de negócios jurídicos por pessoas analfabetas.

 

3. O NOVO DIREITO PRIVADO E A PROTEÇÃO DOS VULNERÁVEIS

Nos últimos séculos, a sociedade experimentou transformações representadas, por exemplo, pela Revolução Francesa, liberalismo, Estado social, neoliberalismo e globalização. Vários foram os reflexos dessas transformações políticas e econômicas nas relações contratuais de natureza privada.

No século XIX, a concepção clássica do contrato foi formulada tendo como pedra angular a autonomia da vontade, sendo conceituado como a união de dois ou mais indivíduos para uma declaração de vontade em consenso, através da qual se define a relação jurídica estabelecida pelos contratantes.

O contrato clássico não se extinguiu, embora esteja cada vez mais raro, a partir do fenômeno da massificação ou sociedade de consumo. Atualmente, denomina-se contrato individual ou paritário e tem lugar quando as partes, em condições de igualdade jurídica e econômica, discutem o contrato cláusula a cláusula, com reais possibilidades de negociar, concordar, discordar, transigir, estipular condições, preço, prazo, forma de pagamento e todas as demais questões contratuais relevantes.

Com o Estado social, o contrato passou a ser visto sob a ótica da função social, de tal modo que ao lado da autonomia privada, a boa-fé e a justiça contratual tornaram-se princípios conformadores dos contratos modernos.

Pertinentes os apontamentos de Brandelli (2007, p. 168):

O direito, em especial a seara contratual, recebeu fortes influências dessa evolução econômico-estatal, tendo de se amoldar a tal evolução, oferecendo respostas jurídicas para os problemas econômicos-sociais aventados. Nesse sentido, o contrato moderno nasceu liberal, como um verdadeiro instrumento de consecução da economia do laissez faire, recepcionando os ideais de liberdade bravejados pela Revolução Francesa. Passou num segundo momento a sugar os ideais do Estado social, promovendo limitações à autonomia privada em nome do interesse coletivo, evitando os abusos cometidos em nome da supremacia da economia de mercado. Por fim, chegase ao contrato pós-moderno, de conotações ainda incipientes, às quais busca o contrato amoldar-se.

Atualmente, o princípio da dignidade humana e os direitos fundamentais irradiam seus efeitos sobre todo o arcabouço jurídico, promovendo uma profunda releitura das instituições de direito privado.

Se antes o pacta sunt servanda era um dogma irrepreensível, agora pode ser relativizado diante dos princípios da boa-fé objetiva, da função social dos contratos e do dirigismo contratual.

Há uma verdadeira renovação dogmática, pois a sociedade contemporânea já não se identifica com a totalidade dos valores e princípios que alicerçaram a antiga codificação do direito privado brasileiro.

O fenômeno não passou despercebido pela doutrina:

Na atualidade, e também no Brasil, com a denominada constitucionalização do Direito, o Direito Privado tem uma função social, função que vai além dos interesses individuais e passa pela proteção dos vulneráveis. Este Direito Privado mais social é guiado pela ordem pública constitucional e seu valor-guia e Ubergrundrecht: a dignidade da pessoa humana (MARQUES; MIRAGEM, 2014, p. 7-8).

No que diz respeito à capacidade civil, se antes a proteção dos incapazes era representada pela interdição, agora a solução passa pelo respeito à diversidade, à deficiência, à liberdade individual e à autonomia existencial. O direito de família, antes patriarcal e matrimonial, atualmente respeita a igualdade de gêneros, a isonomia e a pluralidade de arranjos familiares. No campo contratual, a lei impôs limites à autonomia privada para equilibrar a posição negocial das partes e para respeitar questões de ordem pública, tais como as estabelecidas por lei para assegurar a função social da propriedade e a função social dos contratos.

Pode-se sintetizar essa renovação dogmática na asserção de Lorenzetti (1998, p. 145): “Surge então um novo Direito Privado que tem seus princípios alinhados com os direitos humanos, ou seja, cujas normas convergem e privilegiam a pessoa humana, levando em conta suas características, potencialidades e diferenças”.

A proteção jurídica dos vulneráveis é desdobramento da eficácia interna da função social dos contratos. Nesse sentido, a lição de Tartuce (2007, p. 415-416):

A função social dos contratos pode ser conceituada um princípio contratual de ordem pública, pelo qual o contrato deve ser, necessariamente, visualizado e interpretado de acordo com o contexto da sociedade. (…) Deve-se reconhecer que a função social dos contratos tem eficácia interna (entre as partes contratantes) e eficácia externa (para além das partes contratantes). (…) A eficácia interna da função social dos contratos pode ser percebida: a) pela mitigação da força obrigatória do contrato; b) pela proteção da parte vulnerável da relação contratual, caso dos consumidores e aderentes; c) pela vedação da onerosidade excessiva; d) pela tendência de conservação contratual, mantendo a autonomia privada; e) pela proteção dos direitos individuais relativos à dignidade humana; f) pela nulidade de cláusulas contratuais abusivas por violadoras da função social.

De acordo com os valores e princípios ordenadores do novo Direito Privado, às pessoas analfabetas deve ser reconhecida a capacidade civil plena, levando-se em consideração sua situação peculiar de não compreender a linguagem escrita, para que então sejam adotadas cautelas, formalidades ou solenidades para abonar a autenticidade do negócio e facilitar a prova do consentimento, ou, em outras palavras, garantir que a autonomia privada da parte analfabeta seja preservada e respeitada.

Há precedentes do Superior Tribunal de Justiça que reconhecem a vulnerabilidade dos analfabetos, ora impondo aos fornecedores a adoção de medidas com o fim de conferir maior segurança jurídica aos negócios; ora reconhecendo que a outra parte contratante deve proceder da forma mais cautelosa possível no sentido de assegurar ao analfabeto pleno conhecimento daquilo que contrata.

O novo paradigma de proteção dos vulneráveis no direito privado está alinhado não só com os princípios fundamentais, mas também com a deontologia notarial, fundada nos deveres de assessor e aconselhar as partes com imparcialidade, e com a técnica do instrumento público notarial, que contém elementos definidos por lei para conferir legalidade, publicidade, eficácia e segurança aos atos e negócios jurídicos.

 

4. O TABELIÃO DE NOTAS E A SEGURANÇA JURÍDICA DOS ANALFABETOS

Os tabeliães de notas são profissionais de direito, dotados de fé pública, aos quais o Estado delega o exercício da atividade notarial.

Dentre as competências dos notários estão a de formalizar juridicamente a vontade das partes e a de intervir nos atos e negócios jurídicos a que as partes devam ou queiram dar forma legal ou autenticidade, autorizando a redação ou redigindo os instrumentos adequados, nos termos do artigo 6º da Lei 8.935/94.

O texto legal consigna um dos princípios da atividade notarial, o da autoria. Cabe ao notário moldar a vontade das partes ao direito e redigir o instrumento público, fazendo uso dos institutos jurídicos mais adequados, com estrita observância dos requisitos legais, inclusive no que respeita ao recolhimento dos tributos incidentes. Com sua apurada técnica, o notário presta colaboração jurídica aos particulares que teriam dificuldade para redigir documentos com tamanha conformidade ao direito.

Diferentemente dos escritos particulares, em que a parte analfabeta deverá confiar a outrem a redação do documento ficando sujeita a toda sorte de fraudes, nos instrumentos públicos o notário redigirá o documento de acordo com a vontade das partes, com presunção de veracidade e arquivamento perene no protocolo notarial.

Há um controle de legalidade inerente à intervenção do notário, resultante do juízo feito quanto ao atendimento de todas as condições legais para perfectibilidade do ato ou negócio jurídico. O zelo pela juridicidade justifica os atos de aconselhamento prévios ao negócio jurídico, de assessoramento jurídico e de informação durante todo o exercício da atividade notarial e, inclusive, a inserção de advertências legais quanto aos riscos e consequências do ato ou negócio jurídico pretendido pelas partes.

Ao contrário dos escritos particulares em que as partes podem inserir quaisquer cláusulas e disposições, o instrumento público não poderá conter cláusulas abusivas e disposições que contrariem os textos legais e normativos. Mesmo quando as partes apresentam minutas, a autoria do instrumento público impõe ao tabelião de notas o dever de exigir as necessárias modificações, acréscimos ou exclusões, ou mesmo de negar curso à minuta apresentada, quando a convenção particular for manifestamente contrária e afrontosa ao sistema jurídico e à ordem pública.

Outro mandamento da deontologia notarial especialmente importante para proteção das pessoas em situação de vulnerabilidade, como os analfabetos absolutos e funcionais, consiste no dever de imparcialidade.

O notário tem a obrigação de ser imparcial, e tal imparcialidade se expressa igualmente mediante a prestação de uma assistência adequada a uma parte que se encontre em situação de inferioridade perante a outra, para assim obter o equilíbrio necessário a fim de que o contrato seja celebrado em condições de igualdade.

A intervenção notarial deve garantir o equilíbrio da relação contratual, tutelar a parte mais fraca, hipossuficiente, vulnerável, permitindo a inclusão social desses novos sujeitos de direito. O resultado será a produção de documentos notariais em consonância com os direitos fundamentais e a nova concepção social do contrato.

Na medida em que a atuação notarial equilibra as relações contratuais desiguais, celebrada entre a parte mais privilegiada e o hipossuficiente, entre o homem médio e o vulnerável, entre a empresa comercial e o consumidor, o letrado e o analfabeto; o notário contribui para a justiça social e a pacificação da sociedade. Essa adaptação do notariado para servir à sociedade em uma economia de mercado, assim como para permitir a inclusão social dos novos sujeitos de direito, evidencia como a milenar instituição notarial é perfeitamente ajustável às necessidades sociais.

Não só a deontologia notarial, mas também a técnica do instrumento público contém solenidades e procedimentos estabelecidos para que as pessoas analfabetas tenham a autonomia privada preservada e respeitada. Isto porque a realização notarial do direito não é um ato único, mas um encadeamento de eventos, a saber: averiguação notarial, juízo ou opinião notarial e documentação.

Na primeira etapa, denominada averiguação notarial, o notário ouvirá atentamente os desígnios das partes e analisará a documentação apresentada, relativa aos bens ou direitos sobre os quais versará o instrumento notarial.

A seguir, o tabelião deverá observar se os fatos narrados e os anseios das partes guardam ligação fidedigna com a documentação que instrui o negócio jurídico. E, em caso positivo, identificará a legislação aplicável e esclarecerá as partes quanto aos efeitos e consequências do ato jurídico pretendido, bem como quanto às diferentes maneiras de formalizá-lo, se for o caso. Nesse momento, denominado juízo ou opinião notarial, o tabelião poderá aconselhar as partes e prestar esclarecimentos quanto às opções, detalhando as vantagens e desvantagens de cada escolha. No âmbito do aconselhamento, também há espaço para o desencorajamento da prática de ato que revele-se prejudicial, excessivamente ou desproporcionalmente oneroso.

Nem todo atendimento conduzido pelo tabelião representará a lavratura de uma escritura ou procuração pública. Muitas pretensões não resistem às etapas de averiguação notarial e ao controle de juridicidade. Apenas quando a documentação estiver em ordem é que o instrumento público notarial será elaborado. A etapa de documentação consiste no enquadramento jurídico da questão submetida pelas partes ao notário e na lavratura do instrumento adequado, ou seja, da escritura pública contendo o modelo contratual mais conveniente ou apropriado.

O documento público confere certeza quanto à identidade e capacidade das partes, com indicação clara e expressa da vontade manifestada perante o notário. Após redigir o instrumento, o notário lê-o na presença das partes e comparecentes, e, sendo aprovado à unanimidade, passa a colher a impressão digital do analfabeto, a assinatura de quem assinará pelo analfabeto, a seu rogo, e a assinatura das demais partes e comparecentes, encerrando o ato com seu sinal público.

As escrituras e procurações públicas facilitam o tráfico jurídico de documentos, pois o tabelião de notas assume para si a autoria do documento e a responsabilidade pelos fatos ocorridos em sua presença, como, por exemplo, reconhecimento da identidade e capacidade das partes; manifestação clara da vontade das partes; declaração de ter sido a escritura pública lida na presença das partes, ou de que todos a leram; declaração de que a pessoa não alfabetizada, ou impossibilitada de assinar, outorgou o ato e pediu que alguém assinasse por ele, a seu pedido.

O ritual prescrito pelo artigo 215 do Código Civil não é um ônus imposto às pessoas que não podem ou não sabem assinar, pelo contrário, representa a melhor forma de direito para expressarem sua vontade, com a certeza jurídica – decorrente da fé pública notarial – de que o instrumento realmente expressa o consentimento daquele que não o assinou, bem como aquiescência ao seu conteúdo integral.

 

5. CONSIDERAÇÕES FINAIS

No Brasil, há grande percentual de adultos analfabetos absolutos ou funcionais. Esse problema socioeconômico repercute no mundo jurídico, pois embora as pessoas não alfabetizadas sejam plenamente capazes para a prática dos atos da vida civil, a ausência ou insuficiência de formação escolar básica conduz a uma condição de vulnerabilidade nas mais diversas relações jurídicas.
Surge então, ao direito privado, o desafio de criar mecanismos capazes de equilibrar as transações e conferir eficácia e segurança jurídica aos negócios jurídicos praticados por analfabetos absolutos ou funcionais.

Nesse cenário, o tabelião de notas assume grande importância e protagonismo, como profissional de direito, dotado de fé pública, incumbido de receber e qualificar a vontade das partes, redigir o instrumento público representativo do contrato celebrado, que doravante deverá funcionar como instrumento de equidade e inclusão social.

O exercício da atividade notarial envolve a orientação jurídica e o imparcial aconselhamento das partes quantos às vantagens, aos ônus e riscos envolvidos no negócio jurídico pretendido pelas partes, cabendo ao notário o controle de legalidade e a redação do documento adequado às pretensões das partes.

A opção pelo instrumento público é benéfica para o contratante analfabeto, que confiará a redação do instrumento contratual ao notário e terá sua autonomia privada respeitada; e também para o contratante alfabetizado, pois o instrumento público fará prova plena da identidade e capacidade das partes, da vontade manifestada e da aquiescência ao conteúdo do contrato celebrado.

Daí a concluir-se ser o instrumento público notarial a melhor alternativa à disposição das pessoas analfabetas para praticar atos de declaração de vontade e celebrar contratos, potencializando as liberdades individuais, a autonomia privada, a segurança jurídica e a proteção da parte mais frágil na relação negocial.

 

REFERÊNCIAS

BEVILÁQUA, Clóvis. Capacidade civil do analfabeto. In: DIP, Ricardo; JACOMINO, Sérgio (org.). Registro imobiliário: dinâmica registral (Coleção doutrinas essenciais: direito registral; volume 6). 2ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2013.

BRANDELLI, Leonardo. Teoria geral do direito notarial. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2007.

IBGE – INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA. Analfabetismo cai em 2017, mas segue acima da meta para 2015. 2018. Disponível em: <https://agenciadenoticias.ibge.gov.br>. Acesso em: 16.05.2019.

LORENZETTI, Ricardo Luis. Fundamentos do direito privado. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1998.

MARQUES, Cláudia Lima; MIRAGEM, Bruno. O novo direito privado e a proteção dos vulneráveis. 2ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2014.

TARTUCE, Flávio. Função social dos contratos. São Paulo: Método, 2007.

 

 

[i] O autor é tabelião titular do 7º Tabelionato de Notas de São Luís/MA. Especialista em direito imobiliário, notarial e registral.

Cartório 7º Tabelionato de Notas de São Luís

Av. Daniel de la Touche, 6 - Cohama
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Telefone: (98) 3256-2266
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